sábado, 19 de junho de 2004

Ninguém conhece ninguém


JOSÉ AMÁDIO apresenta JORGE AMADO

A HISTÓRIA de hoje terá canela, cravo e Gabriela também. Terá saveiros, vento, mulatas, exotismo, brancas praias de areia-talco, candomblé, cana-de-açúcar, pimenta, azeite-de-dendê, acarajés agressivos. Terá sol e gôsto de mar; sal e gôsto de terra. Terá sinos, e amôres, e nuvens, e cacau, e luares quase fantasmagóricos. Terá poesia, política, inteligência, autenticidade, fôrça criadora.
Porque o cabra se chama Jorge Amado.

Terra & Gente

Veja você: um menino nasce como qualquer outro, feioso, chorão, franzino, cabeçudo, as orelhas de abano. Anda, vira, remexe e quando menos se espera é nome internacional com livros traduzidos em 30 diferentes idiomas. Amado, Jorge, baiano, é homem de muitos mares, de muitas colinas e de muitos horizontes. Cidadão do mundo, nascido na zona do cacau, aprendeu a fotografar a terra como coração. Sempre andou com os problemas dessa terra no bôlso. Conhece rostos na multidão. É um homem de massas, intérprete de sentimentos e anseios coletivos. Quem o ensinou a entender gente? Onde aprendeu a pegar um pretinho qualquer, bronco, e tirar dêle braçadas de poesia, jarras de simplicidade? Quem já o leu sabe disso: três linhas e o tipo vive, arfa, palpita, deixa rastro, cheiro e gôsto.
Um escritor.

Gabriela & Fuga

Gabriela já é instituição nacional. Caudalosa, transbordou as margens do romance e está-se espraiando pelo País. Deixou de ser personagem para ser gente. Creio mesmo que já a encontrei desfilando para os velhinhos da Gonçalves Dias, trêfega, soltando chispas da mais autêntica feminilidade. Compreendo agora porque Agrippino afirmou ser ela a mulher que mais tem rendido a um romancista nacional. Gabriela é de todos nós, juriti de segunda plumagem em cujo sucesso o autor não confiava muito (acha lenta a primeira parte do livro). Depois que o editor Martins soltou os primeiros 20.000 exemplares, a diaba escapuliu do livro e invadiu o grande público. Os outros personagens, talvez algo enciumados, também tentaram se libertar. Na semana do lançamento, o árabe Nacib foi citado por um comentarista político. Walter leu o livro. Gostou. Recomendou a Mário. Mário leu. Gostou. Recomendou a Milton. Milton leu. Gostou...
Era o livro que se estava esperando.

Comes & Bebes

Literatura é vício, como amor, rapé e cocaína. Vamos deixar êsses azares de lado para enfrentar o outro lado do cidadão Jorge Amado, bom baiano de olhar meio nebuloso e cabelo já sôbre o grisalho. No rosário de nadas e circunstâncias que compreendem o seu mundo (mundo grande) percebe-se que gosta muito de mambembe e de bater papo com amigos (papo simples, sem compromissos ou preocupações literárias). Ama a Bahia acima de tudo, ou de quase tudo. Também gosta de Paris, das velhas canções francesas, da cerâmica popular, dos bons vinhos. Não se considera grande bebedor mas topa conhaque e pisca ôlho para uma boa cachaça. Trata o whisky com certo desprêzo. Não sabe nadar. É incompetente para qualquer espécie de exercício físico. Não teme a morte, mas a considera muito chata, pois acha formidável estar vivo. Sente necessidade de solidão, às vêzes. Tem muitos amigos e alguns prováveis inimigos. É comilão de quitutes baianos. Espera mudar-se definitivamente para a Bahia.
Lá é amigo do rei.

Chaplin & Zizinho

Considera Charles Chaplin a figura n.º 1 da humanidade atual. Picasso (de quem é amigo) é a sua figura n.º 2. Gosta de futebol (América), mas torce mesmo por jogadores e não por times. Sempre foi grande torcedor de Zizinho, de Didi e agora de Garrincha. Fuma três maços de cigarros por dia (e mais quando está escrevendo). Gosta de teatro. Não vai ao cinema para ir ao cinema, mas pela categoria do filme (tem que ser de bom para cima). Aceita um cowboy de quando em quando. Seus livros já foram traduzidos em islandês, francês, sueco, espanhol, inglês, italiano, albanês, russo, chinês, tcheco, hebreu, persa, alemão, lituano, ucraniano, romeno, iidíche, húngaro, cervocroata, esloveno, holandês, mongol, grego, eslovaco, polonês, árabe, dinamarquês, norueguês e finlandês. Acha, modestamente, que deve seu grande sucesso no exterior ao caráter tipicamente brasileiro da obra. Quando o elogiam de cara, perde o jeito, encabula. Dos seus livros, gosta mais de Mar Morto. Mas a preferência é sentimental e não literária.
Já quebrou o dedão do pé.

Obá & URSS

Jorge Amado é pai-de-santo. É um obá. Sabem o que é isso? Obá é uma das dignidades no candomblé de Xangô. É uma espécie de ministro (da mão direita) com direito a voz e voto. O maior pôsto na hierarquia civil do candomblé, mas sem autoridade religiosa. Está ligado aos terreiros há mais de 20 anos e é amigo íntimo de Senhora, a mãe-de-santo n.º 1 do Brasil. E agora, saltando da Bahia para a Oropa (com escalas na França), informo que Jorge Amado já estêve 10 vêzes na União Soviética e 2 vêzes na China Nacionalista. Também percorreu o Paquistão, o Ceilão, a índia, tôda a Europa e América do Sul. Acha que viajando o escritor amadurece e adquire traquejo. Afirma que ninguém pode ser indiferente à experiência soviética (ou se é contra ou a favor) e a considera uma das coisas fundamentais do nosso tempo.
Teve atividade política durante muito tempo, como homem e como escritor.
Agora prefere escrever.

Coqueiros & JK

Em môço, percorreu o Brasil inteiro e está querendo repetir a façanha. Agora mesmo voltou de Pernambuco, depois de passar cinco semanas na praia de Maria Farinha, entre os coqueiros e o mar, sem rádio, sem jornais, sem fumaça a não ser a do cigarro. Achou bom. Sentiu-se bem. Pescou, andou de jangada, falou com os pescadores e alimentou a gravidez de seu próximo livro. Juscelino já leu Gabriela e achou notável (por causa do livro estão consertando o pôrto de Ilhéus). Jorge se confessa fã incondicional da administração de JK. Se não fosse inconstitucional, votaria pela sua reeleição. Acha que Juscelino foi o maior presidente que o Brasil já teve e que seu Govêrno é bastante democrático. Diz isso com tranqüilidade, pois nunca precisou de Juscelino. Nunca lhe pediu favores.
Nem eu.

Irritação & Criação

Jorge detesta gente chata (ou auto-suficiente), calor, chá, avião (tem mêdo de andar em). Se lambe todo com caju, manga e sapoti. Sua fala é mansa, sua conversa embrulhada, na base do"e tal e coisa", "aquêle negócio", "aquêle cara" . Ninguém reconheceria em sua prosa recortada o maior romancista vivo do Brasil. Rumina seus livros durante meses. Quando chega a hora de passá-los para o papel se dinamiza e vira bicho. Chega a ser estúpido, com os que o rodeiam. Nada mais o interessa a não ser a obra. Sua velha máquina (21 anos) resfolega e seus dois indicadores quase desaparecem na velocidade. Início de livro é sempre torturante para êle. Escreve, reescreve, rasga. Depois toma embalagem e pronto: quatro horas de trabalho nos primeiros dias, oito horas na metade, dezesseis nos capítulos finais. Gastou vários meses imaginando Gabriela e escreveu-o em apenas dois (quando já atingira a página cento e tantos, rasgou tudo e começou de novo) . Ao terminar um livro, está esgotado.
E entra numa espécie de vácuo.

Táxi & Luxo

Perguntam-lhe se teme o sucesso de Gabriela. Poderá escrever outro livro melhor? Bobagem. Como esperar que cada livro de um escritor seja melhor do que o anterior? Se houvesse tal receio, o lógico seria parar de vez. Mas como? Jorge precisa escrever. Vive disso. É o seu ganha-pão. Pasmem: Gabriela já lhe rendeu cêrca de quatro milhões de cruzeiros. Seu pai é fazendeiro no sul da Bahia. Cacau. O negócio de Jorge é mesmo literatura. Propostas para novas edições estão sempre chegando e isso o obriga a manter correspondência constante com o mundo inteiro. Tem até secretária. Diz que seu único luxo é andar de táxi. Possui automóvel. Não sabe dirigir nem quer aprender. Sua espôsa (D. Zélia) é a motorista da família. Isso deixa Jorge em preocupação constante: ela pode morrer ou matar alguém. É má companhia para automóvel.
Dá palpite ao motorista.

Ficção & Realidade

Dizem que existe, de fato, uma Gabriela. Jorge afirma que nunca viu tal senhora. Aconteceu um caso em Ilhéus que foi o ponto de partida para o romance. E só. Personagem de livro nunca pode ser figura real, mesmo quando a história é baseada na realidade. Os personagens quase sempre são auto-suficientes e depois das primeiras páginas passam a andar com os próprios pés. Ocorre que às vêzes fazem exatamente o oposto daquilo que o autor desejaria. É no livro que adquirem realidade própria e personalidade. Pergunto-lhe como imagina Gabriela fisicamente. Responde dizendo que já recebeu três Gabrielas (dois quadros e um desenho), tôdas diferentes entre si e mais diferentes ainda daquela que vive em sua imaginação. No seu modo de ver, um escritor não deve descrever os tipos, mas marcá-los. O público que se encarregue do resto. Um leitor quis saber por que Mundinho não casou com a neta do coronel. Não soube responder. Mundinho não casou porque não quis.
Êle, Jorge, não tem nada com isso.

Defeitos & Idéias

Entre os seus defeitos mais marcantes está a preguiça e uma certa tendência para a irritabilidade repentina. Fogo de palha: dois minutos depois dos maiores esbregues é capaz das maiores ternuras. Acha que os defeitos se modificam com a idade e agora, quarentão, considera-se ponderado. Detesta conferências e declamações. Quando vê baratas pode até dar tiros. Seus planos? Está amadurecendo uma história de vagabundos (cujo esbôço foi publicado na revista SR) . Tem fé nesse livro (se chegar a escrevê-lo) . Também planeja um grande painel do Nordeste, cujo personagem principal será um chofer de caminhão, que é o grande herói romântico daquela zona. Será coisa grande, para daqui a quatro ou cinco anos. Um "romance do candomblé" também passeia no seu cérebro.
É grande fã de papagaios.

Paloma & João

Amado, Jorge e baiano. Levou os filhos Paloma e João ao Nordeste para ensinar-lhes o que é bicho, fruta, vento, terra e gente. Não acredita em infância pré-fabricada. Quer que os meninos sejam criaturas humanas e que guardem em si aquêle "sentido da terra" de que nos fala o mestre Nietzsche.
O sentido que êle próprio canta.

in O Cruzeiro

26 de Março de 1960

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